quarta-feira, 10 de outubro de 2012

No entre do lençol estampado em flores...

Evaristo havia chegado em casa cansado como de costume. O trabalho de turnos, lhe dava uma rotina faltante de noites dormidas...em sua programação, chegaria em casa exausto, tomaria aquele banho e deitaria...foi quando, ao abrir a porta, sentiu "uma coisa" lhe mandando visitar Lurdinha, sua noiva. Mesmo cansado, Evaristo deu a meia volta e esperou pelo taxi que o levaria ao barbalho, morada de sua noiva.

Lurdinha tinha sido a única mulher que Evaristo amou de verdade. Contava, ainda com os olhos aguados, que até mesa de madeira de jacarandá, já tinha comprado para o casamento. Amava Lurdinha, como se nada mais no mundo tivesse outra importância.

A casa em reforma, pequena, tinha apenas a iluminação natural do dia. Lurdinha costumava deixar a porta sempre a "meio pau" e afim de fazer uma surpresa, Evaristo caminhou na ponta dos pés para não fazer barulho. Do corredor, pode ouvir o ventilador que ligado, circulava pelo quarto, ondulando o lençol estampado em flores que servia como porta para o quarto de Lurdinha. No entre das ondulações, Evaristo avistou aquilo que mais doeu no seu coração...uma cena que arrancou-lhe a esperança no Amor e que certamente o acompanharia por toda a sua vida...Nas ondulações provocadas pelo ventilador denunciavam  as pernas de Lurdinha entrelaçadas a outras pernas naquela tarde de sábado. Rasgado em uma dor "jamais sentida", Evaristo não deu uma só palavra. Virou-se e saiu, novamente sem fazer barulho...enquanto descia as escadas sentia-se trêmulo e sem força. E, na esquina, em um só gole de conhaque afogou seu coração.

terça-feira, 25 de setembro de 2012


A memória de um presente nunca é exatamente, puramente, apenas a experiência apresentada e isso é que dá a graça de ouvir uma história. O que vivo hoje, neste agora que escrevo, é uma pista, um produto, um caminho daquilo já vivi, que encontra espaço de reaparecer sempre de uma nova forma...diria mais, que não somente do que já foi presente um dia, se faz este agora...este presente momento esta também preenchido de desejos e sonhos do que ainda não existe mas que já se faz quanto presente...um futuro que já é...é neste entre dos tempos que enredamos as nossas vidas, que mergulhamos em experiências e que temos a possibilidade de escrever e narrar histórias de transformação...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

o amor por Rosa vinha dos tempos de meninice e seu José fazia questão de pontuar que "era correspondido mas a timidez é que não deixava"...sentado na roda de amigos, contou e recontou que nos fins de semana, quando ia na boca do rio, chegava a se perfumar todo só pra passar na ladeira da casa de Rosa...A casa da moça, era na ponta de uma ladeira inclinada e a janela, acompanhada de cortinas floridas, dava pra rua onde seu Raimundo vendia suas alaranjadas acerolas..."ah, era aquela expectativa de vê-la da janela", suspirou seu José, apoiando as mãos no canto do rosto como quem perdeu-se em uma imensidão de lembranças cuidadosamente guardadas...

Depois de uns minutos, o rosto marcado pelo tempo começaram a ganhar um ar de meninice, como se em meio as lembranças houvesse encontrado algo que apontasse uma traquinagem ainda possível...foi quando ele revelou que na semana passada tinha visto Rosa com seus três filhos e reparado na porta de sua casa uma placa de "vende-se geladinho"! Atacado pela timidez que ele negava ainda ter, dobrou a esquina antes de ser possível o encontro...Seu José pontuou o tempo, as mudanças do corpo de rosa que, por esses tempos já deveria tá beirando os seus 54 anos..."mas a graça continuava a mesma" e depois de ter dito isso, voltou os olhos para as lembranças, despediu-se dos amigos e caminhou até em casa...

No dia seguinte, seu José acordou cedo, tomou um banho, perfumou-se todo e saiu. Chegou na ponta da ladeira e o vento que descia lhe refrescou a vida...Na porta da casa a placa, que mediava a coragem e a covardia que sentia simultaneamente...Seu José assobiou até ver sair da casa uma mulher...Os olhos de mel de Rosa marearam-se assustados e com as mãos cheias de acerolas alaranjadas, vendidas pelo filho de seu Raimundo, seu José olhou tímido pra Rosa e lhe pediu, derretido, um geladinho...

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Alí estava Luíza, sentada no canto da escada, a revirar a bolsa em busca do esqueiro que acenderia o seu segundo cigarro consecutivo daquela noite. Engraçado porque Luíza revirava a bolsa como quem revira a sí mesmo, em busca de fogo...num ato de retirar todos os objetos/obstáculos do caminho em busca do que se deseja, quase instintivamente...Como se, ao achar o esqueiro, todo o salão escuro pudesse se iluminar com a chama que apareceria instintivamente quando Luíza apertasse o gatilho...Mas veja, no que estou pensando ao ver Luíza no simples ato de procurar em uma grande bolsa um esqueiro...basta de metáforas! estas já me apontaram tudo que é possível saber sobre mim através delas ou, pelo menos, o suficiente...que o ato real seja o de encontrar-me novamente com ou sem esqueiro mas, certamente, com fogo...

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Passos e clarinete

Virginia havia chegado no limite do tempo...correu para o fundo e sentou-se e foi só então que parou para respirar acomodando-se na cadeira acolchoada que lhe permitia reclinar o corpo. O teatro tava lindo, cheio de gente e a luz foi-se apagando...Daí em diante, Virginia só tem certeza de uma coisa, tinha se desconectado inteiramente do que ocorria no espaço externo aquele grande salão. Durante aquelas duas horas, nada foi mais importante do que sentir seu corpo ser preenchido de música. De olhos fechados, o som do clarinete invadia-lhe com delicadeza, rasgando as barreiras da racionalização e dando vivacidade aos floreamentos do sentir que agraciava aquele tempo presente...E foi então, que tomada de emoção, transpondo-se ao pensamento, Virginia sentiu a vida dançando...enfim...

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Eram mais ou menos seis e meia da manhã quando um sonzinho familiar e um pouco desafinado irrompeu os ouvidos de Antonieta...ainda em vigília, abriu um tanto dos olhos, em um ato quase instintivo...foi quando viu sua mãe, a entrar em seu quarto cantarolando, segurando nas mãos um pequeno bolo iluminado por uma vela...Antonieta lembrou-se do dia do seu aniversário e, enquanto ajustava-se na cama para receber os votos, foi invadida por uma alegria de tantas memórias e afetos de sua trajetória e riu quando percebeu-se apagando a pequenina vela verde que iluminava o quarto...Quando já preparava-se para comer o bolo a mãe segurou sua mão e disse "espere, tem que fazer o pedido" lembrando que Antonieta deveria cortar de baixo para cima...Antonieta pegou na faca, um tanto desconcertada, tentando elaborar seus pensamentos que ainda permaneciam adormecidos...que sonho valeria de ser feito no dia do seu aniversário? que pedido a impulsionaria da cama despertando-a para o mundo?...quase emocionada, pôs firmemente as mãos na faca, inclinando-a para dentro da camada fofa e clara do bolo...e no ritmo do atravessamento desejou...depois, comeu o bolo e seu corpo encheu-se de sonhos iluminados por uma pequena vela verde de afetos...

quarta-feira, 4 de julho de 2012


Porque as vezes a especialidade da vida encontra-se na especificidade das coisas...e vai sendo dessas brechas/rompantes de alegrias, de liberdades,  que vamos construindo os nossos espaços de expressão...ora insuportáveis ora tranqüilizantes...


...e vai se tecendo a vida...