quarta-feira, 10 de outubro de 2012

No entre do lençol estampado em flores...

Evaristo havia chegado em casa cansado como de costume. O trabalho de turnos, lhe dava uma rotina faltante de noites dormidas...em sua programação, chegaria em casa exausto, tomaria aquele banho e deitaria...foi quando, ao abrir a porta, sentiu "uma coisa" lhe mandando visitar Lurdinha, sua noiva. Mesmo cansado, Evaristo deu a meia volta e esperou pelo taxi que o levaria ao barbalho, morada de sua noiva.

Lurdinha tinha sido a única mulher que Evaristo amou de verdade. Contava, ainda com os olhos aguados, que até mesa de madeira de jacarandá, já tinha comprado para o casamento. Amava Lurdinha, como se nada mais no mundo tivesse outra importância.

A casa em reforma, pequena, tinha apenas a iluminação natural do dia. Lurdinha costumava deixar a porta sempre a "meio pau" e afim de fazer uma surpresa, Evaristo caminhou na ponta dos pés para não fazer barulho. Do corredor, pode ouvir o ventilador que ligado, circulava pelo quarto, ondulando o lençol estampado em flores que servia como porta para o quarto de Lurdinha. No entre das ondulações, Evaristo avistou aquilo que mais doeu no seu coração...uma cena que arrancou-lhe a esperança no Amor e que certamente o acompanharia por toda a sua vida...Nas ondulações provocadas pelo ventilador denunciavam  as pernas de Lurdinha entrelaçadas a outras pernas naquela tarde de sábado. Rasgado em uma dor "jamais sentida", Evaristo não deu uma só palavra. Virou-se e saiu, novamente sem fazer barulho...enquanto descia as escadas sentia-se trêmulo e sem força. E, na esquina, em um só gole de conhaque afogou seu coração.

terça-feira, 25 de setembro de 2012


A memória de um presente nunca é exatamente, puramente, apenas a experiência apresentada e isso é que dá a graça de ouvir uma história. O que vivo hoje, neste agora que escrevo, é uma pista, um produto, um caminho daquilo já vivi, que encontra espaço de reaparecer sempre de uma nova forma...diria mais, que não somente do que já foi presente um dia, se faz este agora...este presente momento esta também preenchido de desejos e sonhos do que ainda não existe mas que já se faz quanto presente...um futuro que já é...é neste entre dos tempos que enredamos as nossas vidas, que mergulhamos em experiências e que temos a possibilidade de escrever e narrar histórias de transformação...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

o amor por Rosa vinha dos tempos de meninice e seu José fazia questão de pontuar que "era correspondido mas a timidez é que não deixava"...sentado na roda de amigos, contou e recontou que nos fins de semana, quando ia na boca do rio, chegava a se perfumar todo só pra passar na ladeira da casa de Rosa...A casa da moça, era na ponta de uma ladeira inclinada e a janela, acompanhada de cortinas floridas, dava pra rua onde seu Raimundo vendia suas alaranjadas acerolas..."ah, era aquela expectativa de vê-la da janela", suspirou seu José, apoiando as mãos no canto do rosto como quem perdeu-se em uma imensidão de lembranças cuidadosamente guardadas...

Depois de uns minutos, o rosto marcado pelo tempo começaram a ganhar um ar de meninice, como se em meio as lembranças houvesse encontrado algo que apontasse uma traquinagem ainda possível...foi quando ele revelou que na semana passada tinha visto Rosa com seus três filhos e reparado na porta de sua casa uma placa de "vende-se geladinho"! Atacado pela timidez que ele negava ainda ter, dobrou a esquina antes de ser possível o encontro...Seu José pontuou o tempo, as mudanças do corpo de rosa que, por esses tempos já deveria tá beirando os seus 54 anos..."mas a graça continuava a mesma" e depois de ter dito isso, voltou os olhos para as lembranças, despediu-se dos amigos e caminhou até em casa...

No dia seguinte, seu José acordou cedo, tomou um banho, perfumou-se todo e saiu. Chegou na ponta da ladeira e o vento que descia lhe refrescou a vida...Na porta da casa a placa, que mediava a coragem e a covardia que sentia simultaneamente...Seu José assobiou até ver sair da casa uma mulher...Os olhos de mel de Rosa marearam-se assustados e com as mãos cheias de acerolas alaranjadas, vendidas pelo filho de seu Raimundo, seu José olhou tímido pra Rosa e lhe pediu, derretido, um geladinho...

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Alí estava Luíza, sentada no canto da escada, a revirar a bolsa em busca do esqueiro que acenderia o seu segundo cigarro consecutivo daquela noite. Engraçado porque Luíza revirava a bolsa como quem revira a sí mesmo, em busca de fogo...num ato de retirar todos os objetos/obstáculos do caminho em busca do que se deseja, quase instintivamente...Como se, ao achar o esqueiro, todo o salão escuro pudesse se iluminar com a chama que apareceria instintivamente quando Luíza apertasse o gatilho...Mas veja, no que estou pensando ao ver Luíza no simples ato de procurar em uma grande bolsa um esqueiro...basta de metáforas! estas já me apontaram tudo que é possível saber sobre mim através delas ou, pelo menos, o suficiente...que o ato real seja o de encontrar-me novamente com ou sem esqueiro mas, certamente, com fogo...

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Passos e clarinete

Virginia havia chegado no limite do tempo...correu para o fundo e sentou-se e foi só então que parou para respirar acomodando-se na cadeira acolchoada que lhe permitia reclinar o corpo. O teatro tava lindo, cheio de gente e a luz foi-se apagando...Daí em diante, Virginia só tem certeza de uma coisa, tinha se desconectado inteiramente do que ocorria no espaço externo aquele grande salão. Durante aquelas duas horas, nada foi mais importante do que sentir seu corpo ser preenchido de música. De olhos fechados, o som do clarinete invadia-lhe com delicadeza, rasgando as barreiras da racionalização e dando vivacidade aos floreamentos do sentir que agraciava aquele tempo presente...E foi então, que tomada de emoção, transpondo-se ao pensamento, Virginia sentiu a vida dançando...enfim...

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Eram mais ou menos seis e meia da manhã quando um sonzinho familiar e um pouco desafinado irrompeu os ouvidos de Antonieta...ainda em vigília, abriu um tanto dos olhos, em um ato quase instintivo...foi quando viu sua mãe, a entrar em seu quarto cantarolando, segurando nas mãos um pequeno bolo iluminado por uma vela...Antonieta lembrou-se do dia do seu aniversário e, enquanto ajustava-se na cama para receber os votos, foi invadida por uma alegria de tantas memórias e afetos de sua trajetória e riu quando percebeu-se apagando a pequenina vela verde que iluminava o quarto...Quando já preparava-se para comer o bolo a mãe segurou sua mão e disse "espere, tem que fazer o pedido" lembrando que Antonieta deveria cortar de baixo para cima...Antonieta pegou na faca, um tanto desconcertada, tentando elaborar seus pensamentos que ainda permaneciam adormecidos...que sonho valeria de ser feito no dia do seu aniversário? que pedido a impulsionaria da cama despertando-a para o mundo?...quase emocionada, pôs firmemente as mãos na faca, inclinando-a para dentro da camada fofa e clara do bolo...e no ritmo do atravessamento desejou...depois, comeu o bolo e seu corpo encheu-se de sonhos iluminados por uma pequena vela verde de afetos...

quarta-feira, 4 de julho de 2012


Porque as vezes a especialidade da vida encontra-se na especificidade das coisas...e vai sendo dessas brechas/rompantes de alegrias, de liberdades,  que vamos construindo os nossos espaços de expressão...ora insuportáveis ora tranqüilizantes...


...e vai se tecendo a vida... 

quarta-feira, 27 de junho de 2012


Estava aos pés do mar, deitada, sentada, como que encostada no braço do mar que acarinhava-lhe o corpo, permitindo com suas águas, um vai e vem das lembranças...Sentia as ondas calmas, serenas, sem pestanejar...ora gelado, ora  quentinho...o mar a noite e suas surpresas, as suas renovações...estava no meio do mar, o seu amor...Juvelino, o pescador mais conhecido daquela região...e por mais que tentasse, e respeitasse a força das águas, Jacimara não entendia  como o homem havia perdido a mão do mar...como que era possível que depois de tanto tempo, de tanta vivência, de tanta história contada naquelas ondas, as águas tivessem levado o seu amor...Alí, na calada da noite, sem aquele bando de gente que passava o dia a lhe fazer visitas e a exigir-lhe uma força de vida, Jacimara salgou-se toda de memória de Juvelino, sendo que as vezes pensava que avistava seu barco, seu homem, vindo pega-la na areia ...Na beira do mar, entre soluços, Jacimara repetiu em suplicio, como se fosse possível a Juvelino escurtar-lhe, a promessa que lhe havia feito na primeira noite do casal e que  jamais tinha deixado de cumprir..lembrando-se claramente do, entre afagos, ter ouvido da boca do homem, que ela deixasse de agonia, que ele não a faria esperar, depois que a noite caísse, por ele na beira do mar...e lá estava Jacimara, depois de três dias, olhando mareadamente o sol anunciando a ausência do seu amor...

quarta-feira, 13 de junho de 2012


Antonia acordou no sábado pela manhã, com um filete solar que invadia o quarto atrapalhando o sono. Com os olhos ainda entreabertos, Antonia pode avistar, por entre as grades da janela, um azul límpido que se encompridava para além do recorte. Antonia despertou! tomou café, tirou do fundo da gaveta um biquíni e acelerou-se para a praia. Sentada na cadeira, de frente para o mar, Antonia avistou aproximando-se dela uma mulher alta, de cabelos negros e longos, coberta por um cumprido vestido de babados. A cigana parou em sua frente e solicitou a Antonia que estendesse as mãos para que ela pudesse ler. Carinhosamente, Antonia cedeu as mãos a cigana que falou durante muito tempo, tricotando os rabiscos entrecruzados que iam aparecendo nas mãos de Antonia...Quando foi embora,  ainda antes de perde-la de vista, Antonia deitou-se na areia, com os pés a beira do mar, sentindo o sol aquecer-lhe a pele...Ficou pensando em todo aquele falatório da cigana, admirou as próprias mãos por terem tantas possibilidades...Sentiu que poderia experimentar cada uma delas... em suas mãos, o mundo rasgando-se todos os dias e oferecendo-se a ser vivido...Antonia sorriu, como uma criança que descobre onde chegam as formigas depois de tanta caminhada...Em seguida, melou-se na areia e correu pro mar, como quem começa, novamente, a  descobrir o prazer de redesenhar linhas...

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Embaixo da grossa camada de gelo, corre um lago de águas fortes e correntes, Habita nele, todo tipo de vida marinha que suporta a frieza do inverno. Embaixo da grossa camada de gelo, pode-se ver algas verdinhas, peixes coloridos e todo tipo de imaginação. Dentro de toda gente, depois que se atravessa a mais grossa camada de gelo, há um lago de águas correntes e fluidas que guarda em sí, enfim...A vida!


sexta-feira, 1 de junho de 2012

Mareia ô...

As coisas andavam sem encantos para Doralice! Nem a manhã abrindo-se lentamente até rasgar o céu, nem a tarde beirando a noite, nem o mar que ia e vinha, ora sem pressa ora com fúria. Doralice andava assim, sem graça, sem encanto, como quem acordado dorme, como meio que andando de anestesia...

Quando abria os olhos, anestesiava-se e andava na vida, assim meio de tangente, meio que pulando as poças d'agua, se chuva tivesse havido no dia anterior...

Até que um dia, tomada por uma sensação estranha, Doralice não se recorda bem como foi parar de frente para o mar....Era uma manhã dessas de segunda-feira, a praia todinha para ela.

A brisa leve não tangeu seu corpo, não fez curva...rasgou as entranhas de suas ventas até atingir o coração...Dos olhos sairam gotas de mar salgadinhas, escorrendo pela areia de sua face...Sentada, Doralice cavou a terra até sentir os dedos molhados...Lembrou-se das poças d'agua que havia pulado e encantou-se tanto que sentiu no corpo leve a força das águas puxando-a para dentro de sí...

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Pontos de molecagem na sequência dos fatos rotineiros...

Cristina desceu do carro e avisou  ao porteiro que anunciasse a sua chegada. Sentou, cruzou os pés e esperou pela descida de Alberto. Lá pras tantas da conversa, Alberto ofereceu um café que Cristina aceitou só porque a oferta lhe era inesperada. Alberto levantou-se da cadeira apoiando os braços e jogando o peso do corpo para as pernas...Cristina ainda pensou em avisar-lhe do açúcar mas, não foi possível...Quando Alberto saiu, ela dependurou-se no muro afim de passar o tempo olhando a rua e as pessoas que por alí passavam...Foi quando escutou, vindo de cima, um barulho de louça...no fundo Cristina sabia que jamais escutaria do térreo o movimento do nono andar...mas do que lhe importava isso? A moça fez um ar de descoberta e voltou-se para o barulho, imaginando Alberto envolvido entre xícaras, pires e biscoitos...Quando Alberto chegou, Cristina sorriu, agradeceu e voltou a conversar com olhos de molecagem...

quinta-feira, 10 de maio de 2012




Já as quatro da manhã o galo de Januário anunciava o principio do dia e as cinco e meia o sol já rasgava o céu, iluminando aquela extensão de terra  que se acumpridava para além das vistas...Januário acordou tateando os móveis  e esticando o corpo. Da janela, avistava a terra que ali estava entregue aos seus cuidados. Requentou o café preto do dia anterior, amoleceu o pão na saliva e calçou as botas...Atrás da porta, pegou o instrumento, espreguiçou-se, ainda tendo tempo de trocar um bom dia rápido com o galo que já se preparava para dar mais uma vez os avisos...Januário caminhou tão infinitamente quanto a terra e por algum motivo, naquele dia, o som da bota no chão, fez com que ele parasse e olhasse para baixo. Januánrio passou a mão na testa e pode ver, por entre os cílios, a gota de suor a escorrer e evaporar-se antes de chegar ao chão.  Parado, olhava aquela terra seca e rachada, aquela terra que em outra estação tinha sido palco de tanta vida... Alembrou-se do tempo de menino, mas menino mesmo, que mãe e pai chamava para o trabalho e a família inteira caminhava infinitamente até o meio da terra...mas desde que ouviu seu pai dizer que ganhou corpo,  foi mandado para aquela fazenda no meio do nada, de algum fazendeiro que por lá nunca aparecia...Januário agachou-se no chão e passou os dedos na terra, não havia barulho de nada em volta, estava só...ele, a terra e seu coração seco e rachado de tempo e saudade...só os olhos de Januário é que se molharam naquela manhã... 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um convite as emoções: Soledad e a solidão de encontrar-se

Tinha bem uns três dias que Soledad acordava com um choro contido depois de sonhar continuamente com uma porta entre-aberta da qual saía um fio de luz amarelada iluminando um grande salão de chão de madeira e paredes descascadas pelo tempo...Quando acordada, em meio ao susto, lembrava-se da frase da sua infância "Soledad, engula o choro" e de forma obediente continha-se ainda na cama, respirava fundo e só então dava inicio a sua rotina...Os sonhos permaneceram por mais de uma semana, sempre aquela porta entre aberta, aquele filete de luz oferecendo-se como um ópio ao seu corpo e quando acordada a lembrança...Quantos choros Soledad deveria ter engolido ao longo da vida? que convite fazia aquele filete de luz irresistivelmente amarelado e aquele duplo sentimento de curiosidade e horror que fazia Soledad correr quase em desespero? Foi em uma madrugada, entre as folhas secas do quintal que Soledad se fez essas perguntas e depois, esgotada, dormiu alí mesmo...no sonho, entrava no salão de chão de madeira, iluminado por um filete de luz amarela saído de uma porta entre aberta...Soledad caminhou como uma criança que acaba de aprender a andar, meio tropega e ofegante...respirou e pôs levemente os dedos e somente depois a mão na fechadura empreendendo toda a sua força para abrir aquela porta...preenchido o salão pela luz amarela, Soledad sentou-se cansada e feliz e regurgitou o choro de uma vida inteira...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Abacates Verdes prontos para amadurecer

Havia tempos em que Lucila não comia abacates, desde que tinha virado moça, abandonara-os junto com a meninice. Em sua infância, o barulho dos abacates no liquidificador costumava amanhecer o seu corpo, e Lucila sempre ficava intrigada com a cor verde dos abacates e com aquele enorme caroço no meio. Ainda pequena, já teria feito milhares de experiencias para tentar descobrir que segredo os abacates escondiam ou que, pelo menos, poderiam guardar...E foi assim, como quase tudo que importa, que em uma noite qualquer, saindo do trabalho, uma moça lhe perguntou se ela gostava de abacates, já com um saco inteirinho deles nas mãos. Durante dois segundos Lucila ficou sem ter o que responder a moça na sua frente que segurava pacientemente o saco...a resposta afirmativa fez com que a mulher, carinhosamente, lhe entregasse os abacates voltando-se para completar "os abacates estão prontos para amadurecer...já dá pra sentir o caroço".

Lucila pegou o saco e guardou mas, não pode deixar de ser invadida por uma grande correnteza de lembranças que a levava para a sua infância e que diretamente fazia-a pensar nos segredos guardado pelo caroços e esquecidos no seu passado...Naquela noite, Lucila sentou-se como uma criança no meio da cozinha, pegou uma faca e já emocionada abriu o caroço para amadurecer..

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Rodolfo era um desses homens que acorda sempre cedo e independente do despertador, põe os pés no chão, toma o copo de leite e sai para o trabalho. Rotineiramente, durante anos, Rodolfo sempre fazia o mesmo percurso, indo e vindo para cumprir suas obrigações de funcionário público. O lema de Rodolfo era a vida concreta e sem abstrações. Tudo andava muito bem até começar a sentir pequenas palpitações no coração. Rodolfo resistiu o máximo que pode mas foi ao cardiologista. Depois de uma bateria de exames, o médico disse que estava tudo bem e Rodolfo protestou afirmando sentir diariamente esquisitas palpitações! Sem diagnóstico, folgou a gravata e saiu caminhando em direção a estação. O que Rodolfo não havia contado era que a mais ou menos dois meses Carla havia sido transferida para o seu setor. Carla era uma das poucas mulheres daquele escritório. Diferente de Rodolfo, Carla era um furacão! desde que ela passou a sentar na mesa em frente a de Rodolfo, nunca mais ele pode ter dignamente uma rotina. Agora, ele passa horas parado olhando para a tela do computador que o separa de Carla e ouvindo-a digitar e sorrir...tudo que Rodolfo faz no trabalho, quando Carla chega, é imaginar! outro dia até perdeu a hora pois estava com Carla a sonhar...

quarta-feira, 25 de abril de 2012


Desanuviar o juizo
É como se fosse
Nuviar o pensamento

Deixar o pensamento
Entrar no estado de ser nuvem...
feito algodão-doce
E a gente pudesse passar a mao por dentro dele
Ou, se colocar na boca e sentir ele virar
 puro açúcar derretendo

desanuviar o juízo é, como se fosse possível,
transformar o pensamento sofrido
Em estado de ser levado por vento.


terça-feira, 24 de abril de 2012

GAVETA DE PANDORA: O ESQUECIMENTO E SUAS ILUMINAÇÕES

Fátima desceu as escadas enquanto procurava as chaves no bolso. Há tempos não ia naquela parte da casa e logo que chegou a porta pode sentir o cheiro do tempo que passou. A porta rangeu ao abrir, como se reclamasse de ter ficado esquecida por tanto tempo e Fátima limpou as mãos empoeiradas batendo-as sobre as coxas. Dentro do quarto, a luz ainda era amarela e os móveis estavam cobertos por uma fina camada de antiguidade, fato que foi verificado no susto de Fátima ao ver uma pequena aranha passando para continuar a sua teia.

Fátima abriu as gavetas do criado-mudo. Guardara lá, em uma caixa de madeira, as fotos que trouxera da casa de sua mãe durante a mudança. Ela riu com saudades das tardes ensolaradas de domingo no quintal de sua avó e do bolo de mistura com cobertura de chocolate do seu aniversário de sete anos...Fátima perdeu-se no tempo em meio as gavetas que iam-se abrindo.

Quando já alcançava a última gaveta, foi da sala que chegou o tirintar do telefone, recordando de que já chegava a hora de retornar. A gaveta meio emperrada ficou entre aberta e, quando Fátima bateu a porta, iluminou-se de esquecimento e memória o quarto no fundo da casa.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Que vejo flores em você

Paulo tinha saido como de costume...era domingo e faria sua rotina de sempre: iria na padaria, passaria na banca de revistas para comprar cigarros e por fim, bateria um papo com a florista da esquina. Tudo estava indo bem até a conversa com a florista ser interrompida por um rapaz afoito que entrava para comprar um buquê de rosas para a mulher. solicito, Paulo fez as honras da casa, como um anfitrião, e conduziu o rapaz para a ala das rosas enquanto colocava em prática todos os saberes sobre flores que havia adquirido ao longo dos meses de conversa com a florista. A conversa entre os dois rapazes virou um grande encadeamento de fatos e acasos e Paulo foi embora se dando conta de que teria perdido o horario. No domingo seguinte, acordou e fez tudo como de costume e quando já saia da loja encontrou Roberto na esquina. Os rapazes se cumprimentaram e Paulo convidou Roberto para tomar um café em sua varanda. Lá a conversa das flores só teve fim quando as palavras perderam o espaço para os olhos que se fitavam e a vida pode dar seguimento ao seu curso de enredar histórias.

Maldito sonho de Valsa

No cinema, sozinha, ocorreu-lhe uma grande idéia. A moça aproveitou o clima de páscoa, a solidão dos estudos do rapaz, o desejo de poder encontrar novamente aqueles olhos desconfiados. Foi na bomboniere do cinema, escolheu pelo sonho de valsa, um clássico. Ainda antes de pegar o embrulho, ligou para ter certeza de q tudo ocorria bem. Do outro lado, diante do mistério, apresentou-se uma voz confusa que exigiu sentidos e lógicas. Mas isso estragaria tudo. A moça olhou-se no espelho, garantiu os tons dos cabelos cacheados, perfumou-se e partiu. Foi recebida com dois olhos assustados e sem alegrias! Recolheu a felicidade que se passava por dentro e se despediu, ainda tendo tempo do rapaz agradecer-lhe o chocolate. E foi só! 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Chuva de dentro...

Martha estava sentada no bar, que por conta da chuva tinha pouco movimento. Naquele dia, tinha acordado bem cedo e ido ao atacadão fazer as compras do mês. Enquanto os últimos clientes se arrumavam para pagar a conta, Martha chegou na porta e encostou-se na parede, assim como quem cansou do dia. A chuva caindo fazia um barulho grosso ao bater no fundo do balde, enveronhada, comentou com os clientes que já tinha chamado seu Roberto, "não sei quantas vezes", pra dar um jeito naquelas telhas. Resmungou do dia puxado, coçou a cabeça e deu o troco. Depois ficou alí, parada, esperando a chuva passar, com aquele aguaceiro não dava pra voltar pra casa.  

A chuva lembrava-lhe a solidão! ficou com saudades dos filhos que estavam em São Paulo. Foi em uma noite como aquela que Martha chegou em casa e não encontrou ninguém. Humberto tinha arrastado os filhos sem deixar nenhum rastro. Martha sentiu as pernas doerem e com as mãos nos joelhos olhou novamente a chuva. Levantou, fechou o bar e a última coisa que se sabe é que Martha sentiu o coração alagado.   

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Traquinagem para colar os pedaços.

Lia amanheceu estranha naquela manhã. Diante da esquisitice, ainda na cama, passou levemente a mão pelo corpo a fim de conferir que tudo ainda estava no lugar. Por conta da chuva, pensou em esticar o tempo na cama mas, ao seu lado, o ronco de José lembrava-lhe do café pra fazer. Levantou e saiu tateando a porta até encontrar a luz. Andou até o banheiro e no caminho, olhou os filhos na cama, decidiu deixa-los aproveitar. No banheiro, lavou o rosto a fim de despetar e, quando já quase se virava para aprontar o café, deparou-se com o espelho. Alí, diante dela, uma mulher cansada e triste a espiava. Foi nesta hora que Lia ouviu José levantar e correu para a cozinha. Acordou o menino, passou a camisa - marido dela não ia abarrotado pro trabalho - botou o café na mesa e, quando tudo sossegou, voltou correndo para o espelho. Lá, Lia se perguntava como tanto tempo havia passado...Diante dela estava uma mulher despedaçada! Triste, sentou-se no sofá e, enquanto misturava o café na xícara,  o tempo em que era menina e corria descalça pelas ruas de barro do interior começou a chegar. Lia deu um pequeno sorriso em meio aos olhos que se enchiam de água. Lembrou do rio e da seca, da árvore e dos bichos, da traquinagem com os meninos da casa ao lado. Teve uma ideia mas, achou mesmo que tava ficando abobalhada! Não resistiu! O parque tinha chegado no bairro a mais de uma semana e Lia guardava no minhaeiro, diariamente, moedas para algum momento especial. Lia olhou-se no espelho, a mulher triste e cansada ganhava ares de traquinagem. Tratou de mudar logo de roupa e saiu sem fazer barulho. Naquela manhã Lia esqueceu de aprontar o almoço.

Aline Matheus

terça-feira, 17 de abril de 2012

Faça um blog já: Escrita e Publicação

O ato histórico da escrita atravessa, pelo menos para mim, o processo de revelação do ser a partir da palavra. Abrigo dos delírios e devaneios, o registro escrito carrega consigo a fantástica fábrica inventiva do ser humano. Prova disso, encontramos nos cadeados e nas diversas artimanhas de tornar secreto, muitas vezes não somente para o outro, as facetas da imaginação e a própria construção do cotidiano, tal como vivenciamos (valendo a nota de que isso é diferente dos fatos concretos). É no registro que se encontra também o jogo entre a memória e o esquecimento, o dito e o não dito, as significações diversas de um olhar sobre o mundo, a própria experiência. Desta forma, o registo cumpre o papel de recolher/acolher uma vida, uma história, uma criação cotidiana.

Certa vez, ao mandar um pequeno texto para um amigo e já quase não sustentando a ansiedade de sua possível "avaliação", me veio como resposta, apenas uma frase "faça um blog: já". Me lembro de ter ficado estatalada na frente do computador, em meio as demandas que iam surgindo no trabalho. Sim! como era difícil tornar público, mostrar a outros, uma escrita cotidiana e íntima.

Mas, afinal, para que servem os cadeados e esconderijos, se não para serem descobertos? Não é através deles que sinalizamos para o mundo o desejo da violação e da descoberta? Então ai está! como resposta a resposta que me foi dada, por uma vida que vai sendo narrada, pelo desejo de encontros e compartilhamentos!